Propriedades, foros, pensões e juros de capitais
Os foros constituíam a fonte principal dos rendimentos da Misericórdia de Vila Real. Numa perspectiva de longa duração, se efectuarmos uma análise global da constituição e valor de todo o património da Santa Casa, próprio ou vinculado a capelas e a outras obrigações pias, desde as origens até 1830, podemos chegar às seguintes conclusões:
- o número mais significativo de foros cobrados pela Santa Casa dizia respeito aos bens que o protonotário Pedro de Castro vinculou para tal fim, entre 1524 e 1539;
- a quantidade de foros pertencentes à Santa Casa praticamente não aumentou do século XVII em diante, a revelar um progressivo afastamento da sociedade vila-realense daquela Instituição, já quanto à vinculação de propriedades destinadas a capelas (movimento de declínio a que já nos referimos a propósito dos vínculos das missas perpétuas), já quanto às doações de dinheiro, propriedades e foros à Santa Casa);
- as propriedades e outros bens hipotecados ou vinculados ao pagamento dos foros, próprios de uma sociedade rural, são regra geral, humildes, a revelar que a nobreza vila-realense, ou não dispunha de grandes bens ou não estava particularmente ligada à Misericórdia do velho burgo; as vinhas, courelas, oliveiras, hortas, casais, herdades, chãos, etc., demonstram, pela sua descrição e foros que pagam, uma pequena nobreza e burguesia tementes a Deus mas desprovidas de riqueza;
- o valor dos foros cobrados pela Santa Casa, vinculados a capelas, estava longe de cobrir as despesas de culto e assistência a que a mesma era obrigada;
- o património e os rendimentos da Misericórdia eram bem modestos.
Assim sendo, não é de admirar que as dificuldades sentidas pela Misericórdia de Vila Real, a partir do século XVII, acabassem por eternizar-se e muito provavelmente por agravar-se.
É claro que as receitas da Misericórdia de Vila Real não se limitavam apenas aos bens das missas e aos foros e pensões, que a Instituição, aliás, a partir da segunda metade do século XVIII, procurou converter em dinheiro, prescindindo das exíguas rendas perpétuas (e das dificuldades que levantavam na sua cobrança) que aquelas geravam.
Desde cedo, a Misericórdia de Vila Real procurou encontrar outras fontes de financiamento, de tal modo que, no ocaso do Antigo Regime (inícios do século XIX), os rendimentos dos foros eram já ultrapassados pelos juros recebidos, provenientes de empréstimos de dinheiro da Misericórdia a particulares, quer de verbas próprias, quer de dinheiro obtido no mercado de capitais a um juro módico (em regra, 5%), para depois ser disponibilizado a um juro mais elevado (6% ou 6,5%).
A análise da receita e despesa da Santa Casa de Vila Real, por exemplo, para os anos económicos de 1832-1833 e 1833-1834, revela que a parcela mais significativa da receita, superior a 50%, correspondia aos juros recebidos, ao passo que o rendimento dos foros não chegava a 10% do valor total da mesma, sendo ultrapassado até pelo rendimento das tumbas.
Esta tendência vai aprofundar-se ao longo do século XIX, já por força da desvalorização dos foros pagos em espécie, já devido à intervenção do Estado no sentido de sujeitar ao regime de direito comum os bens de mão morta.
Em 1866, o Estado deu um golpe nos rendimentos das misericórdias, com a lei de 22 de Junho de 1866, estendendo às mesmas a lei da desamortização, de 4 de Abril de 1861. De acordo com este diploma, as misericórdias foram obrigadas a inventariar todos os prédios rústicos e urbanos, foros, censos, quinhões e pensões, cuja lista, remetida ao Governo, permitiu que tal património, anunciado no Diário do Governo, fosse vendido em hasta pública, na capital do distrito, sem qualquer intervenção destas instituições de assistência.
Com tal medida, pretendia-se facilitar a administração das misericórdias e garantir rendimentos mais elevados. Na verdade, tal não aconteceu. A crise financeira de 1890-1891, a inflação, e a lei de 26 de Fevereiro de 1892, que reduziu em 30% os juros das inscrições da dívida púbica que aquelas possuíam, veio agravar a situação económica das misericórdias, levando a que os serviços de assistência por elas prestados caíssem drasticamente.
Ao longo do século XIX, esta tendência intensificou-se, de tal modo que, no que diz respeito à Misericórdia de Vila Real, no ano económico de 1895-1896, a receita dos foros, incluindo os que se encontravam com o pagamento em atraso, representavam apenas 6,1% da receita, enquanto os juros de capitais mutuados atingiam 71,1% do valor total daquela.
No caso do Hospital da Divina Providência da Misericórdia de Vila Real, torna-se evidente que, dada a sua fundação tardia, em 1796, a importância dos foros nas receitas não se coloca. Em 1859, o fundo permanente deste Hospital atingia os 97,8 contos de réis, sendo a receita de 5 contos de réis, dos quais 98% eram provenientes de juros.
Com a Primeira República, na sequência da lei da separação do Estado e da Igreja, de 20 de Abril de 1911, as misericórdias tiveram que reduzir as despesas de culto até à terça parte dos seus rendimentos, estabelecendo-se ainda que os encargos pios teriam uma duração máxima de 30 anos. Mas a situação financeira das Santas Casas agravou-se durante a Primeira República (1910-1926). A esta situação aflitiva veio acorrer o Estado Novo, concedendo-lhes "ampla autonomia e sem qualquer intervenção do Estado", levantando restrições à conservação e aquisição de bens imóveis e apoiando financeiramente as misericórdias que mantinham hospitais, concedendo-lhes subsídios avultados, como aconteceu, em 1928, com a Misericórdia de Vila Real, que recebeu 115 contos de réis, verba indispensável para a Casa equilibrar as suas finanças.
As dificuldades financeiras regressaram com a Segunda Guerra Mundial e anos seguintes, levando estas instituições à angariação de fundos, nomeadamente com os cortejos de oferendas, que se prolongaram até finais da década de 1960. A Misericórdia de Vila Real não ficou imune a este movimento, tanto mais que, como revelam várias vezes as suas Comissões Administrativas, as receitas eram "totalmente absorvidas pelos encargos que sobre ela pesam", já que a Instituição passou a ser responsável por outras valências que o Estado, directa ou indirectamente, lhe confiou.
A partir da década de 1960, a situação económica da Santa Casa de Vila Real melhorou progressivamente. Os subsídios estatais aumentaram, assim como as doações particulares, e de 1968 em diante, o rendimento do produto líquido do Totobola da Misericórdia de Lisboa começou a ser parcialmente transferido para as restantes misericórdias.
Presentemente, as receitas da Misericórdia são constituídas, basicamente, pelas verbas pagas pelo Estado, através da Segurança Social, e que correspondem a 30% da despesa feita com os utentes – idosos ou crianças – que se encontrem nas diversas valências; pela comparticipação dos utentes, que ronda igualmente os 30%; e pelos fundos próprios da Instituição, provenientes dos rendimentos do seu património imóvel, criteriosamente geridos pela Administração da Casa.